quarta-feira, 29 de abril de 2009

Memórias do Esquecimento

No livro “Memórias do Esquecimento”, a narrativa de Flávio Tavares, seu autor, constitui-se de memórias. Pela lógica que formula seus escritos - que não é a cronológica, mas sim a de suas lembranças, de suas memórias mais presentes, portanto de sua subjetividade - ele inicia sua história contando aos leitores, os momentos mais intensos vividos no período em que foi preso, em que foi torturado, e em que esteve no exílio. Toda a primeira parte de sua escrita está marcada pela vivência “na própria pele” de momentos decisivos, de escolhas, de dores e de medos. Na segunda parte, sua abordagem transforma-se e parece, num primeiro momento, desejar que o leitor entenda os motivos que os levaram - ele e seus companheiros - a estar envolvidos ideologicamente com o enfrentamento à Ditadura Militar, fazendo assim, recortes políticos e inclusive cronológicos. Mas, observando a escrita como um todo, o que está em evidência é a sua relação pessoal com os fatos, e a forma individual de perceber os acontecimentos e neles intervir. Ainda nesta segunda parte, o autor argumenta, reportando-se ao período anterior ao da Ditadura, em que idealista, e em comunhão com as ideias revolucionárias que atravessavam suas reportagens, viagens e vivencias pessoais com amigos e conhecidos, re-busca em sua própria história de vida a justificativa de sua participação em todo aquele cenário de sofrimento que havia sido posto pela prisão, tortura, exílio, etc. Embebido, portanto, deste espírito que o motivava a questionar o regime que se abatia sobre seu país, e desconhecendo aquela forma de fazer política, visto que, como ele mesmo escreveu, sua geração havia sido instruída com um entendimento de “política” que destoava muito do autoritarismo que se fazia presente no Brasil daqueles anos, Tavares assume sua imersão em uma disputa que merecia a assunção do risco de vida, estava consciente de que era necessário fazer aquilo por sua “causa”, mesmo que, em alguns momentos do livro, principalmente na primeira parte (p.52 e 53), questione seus próprios atos, bem como os do grupo como um todo e suas conseqüências. O sumário de seu livro revela que, em grande medida, toda sua escrita esteve imbricada com a forma de lembrar do autor, pois somente ao lermos os capítulos, conseguimos dar sentido aos títulos. Desta forma, o autor, já de início, instiga a curiosidade do leitor que, não entendendo a linguagem figurativa que é utilizada no sumário, deseja ler para entender. Esta linguagem metafórica instiga a imaginação e aproxima as vivencias do autor com a realidade vivida. Trata-se, de recursos literários que transpassam a escrita e logo, a leitura, e o autor o faz de forma muito apropriada, condicionando o leitor a se colocar no lugar, a viver as mesmas angústias criandoum esteio de realidade que torna a narrativa particularmente forte para ao leitor, na medida em que ela o envolve emocionalmente (...) e também faz um apelo aos nossos sentimentos morais e éticos de justiça, igualdade, solidariedade, etc. (SELIGMANN-SILVA, Márcio. p.182, 2006). Kolleritz, que analisa a escrita testemunhal e a caracteriza como um gênero narrativo, expõe que (...) o estilo não é aleatório, a descrição a mais exaustiva possível também é modo de atestação, intrínseca ao gênero. Esse realismo tem dupla função, ou melhor, a função literária evocativa e remissiva possui, neste caso, papel autenticatório. A descrição pormenorizada visa asseverar a presença, visa certificar a autenticidade: é ela que tornará real, é ela que produzirá verdade. (KOLLERITZ, 2004. p. 09) O relato de Flávio Tavares, no livro em análise, se aproxima da abordagem teórica de Kolleritz. Percebemos durante toda a narrativa, que é ao mesmo tempo difícil de ler porque nos remete a momentos de tensão, e fácil porque a linguagem é acessível e está materializando sentimentos, que o autor pôde expressar sem preocupar-se com a veracidade do dito, mas apenas com a beleza do dizer, e de alguma forma, com a tarefa de fazê-lo, por si e pelos outros. De acordo com Kolleritz “(...) filho da memória e do esquecimento, a duplo título, o testemunho é subjetivo”, (KOLLERITZ, 2004.p. 02), mas, também, “graças ao testemunho o mundo ausente torna-se disponível; ele multiplica nossa existência, potencializa nossas vivencias”, (p. 03) e ainda, segundo este autor, “os testemunhos são capazes de construir o real” (p.03).
Há certa impossibilidade de se construir um discurso neutro sendo ele testemunhal, ou não. De qualquer forma, o sujeito que vivenciou (ou não) um fato qualquer, ao escrever sobre o assunto expõe sua subjetividade, seus traços e também fragmentos de sua história e individualidade. Quando Márcio Seligmann-Silva utiliza o termo “proximidade”, ao abordar com exclusividade o caso testemunhal, refere-se a esta intimidade da memória (e do esquecimento) que são componentes intrínsecos da narrativa testemunhal. Narrativas estas que trazem os acontecimentos àqueles que não estavam lá para ver com seus próprios olhos e sentir na pele o que os testemunhos viveram.
Ao mesmo tempo, ao narrar fatos ocorridos no passado, o autor do testemunho dá-se a “re”-pensar os acontecimento, dá-se a “re”-vivê-los, mas de uma outra forma, afinal é o sujeito do presente que observa o sujeito do passado e nele esta contida a experiência do final, o tempo de esquecimento, o tempo do “re”-encontro com o vivido, a subjetivação do vivido, todo um processo que marcará a escrita. Nisto, torna-se possível "julgar", dar uma opinião, ou referir-se ao passado vivido, com o sujeito de hoje, já mudado.
O Flávio Tavares que vivenciou todo este processo de re-estruturação emocional se mostra nas páginas de seu livro, visto que, em algumas circunstâncias, demonstra ter clareza que nem sempre tomou, junto com seu grupo, a decisão mais acertada; mas ao fazê-lo, justifica-se com o olhar do homem do presente, que olha para trás. Neste trecho, vemos um posicionamento do presente, para explicar ou abordar o passado:
Com olhos de hoje é fácil afirmar que o foco guerrilheiro foi um gesto romântico, uma experiência bucólico-revolucionária ou uma aventura pouco condizente com a realidade ao seu redor. (Até mesmo porque fomos derrotados e qualquer teoria é irrefutável para explicar a derrota). Era impossível, no entanto, perceber isso antecipadamente, com os olhos da época. (TAVARES, p.188)
Desta forma, um processo de reflexão acompanha a escrita testemunhal que não será certa ou errada, mas sim, a exposição de uma forma de sentir e viver os acontecimentos, e também, depois, uma forma de refazê-los internamente e, ainda mais tarde de expressá-los.



Excerto de trabalho acadêmico realizado para a atividade de Historiografia Regional, onde debatemos sobre as possibilidades de pesquisa hitórica acerca da Ditadura Militar.